"Santa Marta e o túnel escuro" (web)
Written by urbe, Posted in Urbanidades
URBeTV: o curta-documentário “Santa Marta, o túnel escuro”,
filmado com uma câmera fotográfica digital
doc e fotos: Bruno Natal
A notícia de que o tráfico havia sido expulso da comunidade pela polícia era tão boa que só vendo para crer. Aos pés do Santa Marta, o plano inicial sofreu uma pequena modificação.
A idéia era simplesmente chegar e subir as ladeiras, sem pedir autorização a ninguém, exatamente como se faz transitando entre bairros no asfalto da cidade.
Dado o tamanho da novidade, não custava nada avaliar a situação falando com os policiais na viatura estacionada na subida da ladeira:
– E aí, é só meter o pé mesmo?
– Pode subir, tá na boa. Acabou de subir um monte de jornalistas com o comandante do 2o Batalhão, pelo bondinho.
– Então não tem bandido na área mesmo?
– Olha, subindo pelo bondinho tá tranquilo. Mas deve ter vagabundo escondido na mata ainda.
As iniciais do Comando Vermelho num muro: cicatrizes recentes
O bondinho é um plano inclinado que funciona como um elevador para os moradores da favela mais íngrime do Rio, onde vários repórteres aguardavam para ser levados ao topo do morro pela secretária de educação e pelo comandante da polícia.
A perspectiva de uma visita guiada oficial era desanimadora. Nada podia estar mais distante do objetivo original de simplesmente visitar a favela como quem vai a qualquer outro bairro da cidade. Sem falar na fila de mais de meia-hora pra subir no bondinho.
A grande revolução que pode ser promovida por uma comunidade sem tráfico é justamente possibilitar o encontro de duas realidades cada vez mais distantes.
O Rio de Janeiro precisa se tornar uma cidade só, sem separações, para se reerguer e reestruturar. O que isso pode trazer de bom é a livre circulação de pessoas e idéias.
Pierre Azevedo e dois de seus alunos de percussão
Decidi subir a pé e logo conheci o Pierre Azevedo, diretor da ONG Atitude Social. Baixista e ex-morador da comunidade, ele dá aulas de percussão para criançada na Casa de Cultura Dedé.
Tendo Pierre como guia (mas não uma escolta, pois realmente o morro estava calmo) para não me perder pelas vielas e chegar até o topo, rapidamente comecei a conversar com alguns moradores.
Por ingenuidade, não esperava o tipo de reação e as resposta que ouvi quando comecei a perguntar sobre as primeiras impressões da ocupação policial e a saída do tráfico.
Não ouvi ninguém reclamar da partida dos traficantes, porém a maior parte das pessoas, além da incredulidade, não acredita muito que isso irá durar. Mais do que isso, estão realmente incomodadas com o choque de regras.
Durante o passeio, ouvi diversas reclamações: que haverá horários para as coisas funcionarem e regras a serem seguidas, as bebedeiras agora vão ser vigiadas, que estouraram a central clandestina de tv a cabo, de que as novas casas e a urbanização impedem as criações de animais e hortas em chácaras… E de como tudo isso altera o ambiente da comunidade como eles a conhecem.
É natural que seja assim. A experiência dessas pessoas com a presença do Estado é, em grande parte, negativa. Além disso, por mais paradoxal que possa soar, existe uma liberdade proporcionada pela ausência do Estado que é difícil de perder.
A frase de um morador, em resposta ao meu argumento de que as melhorias sociais e urbanísticas certamente viram acompanhadas de responsabilidades e deveres, resume bem a questão: “eu não fui criado assim”.
Esse é o ponto central de qualquer projeto que pretenda integrar as favelas ao resto da cidade. Coisa que parecem lógicas e normais no asfalto, são totalmente alienígenas na favela.
Assim como a noção de comunidade desses lugares dá um banho no resto da sociedade, onde vizinhos de porta num mesmo prédio mal se cumprimentam, o que dirá se ajudarem.
Há, claro, também muita desconfiança em relação as reais intenções de um projeto desses.
Da maneira que são hoje, as favelas são em maior parte ocupações ilegais, sem escrituras. Portanto, mesmo algumas delas (as da Zona Sul) estando situadas em áreas nobres, a área não pode ser negociada.
Numa região sem mais um palmo de área livre pra construir, pode ser que estejam preparando o terreno para especulação imobiliária.
Estrutura-se o local e entrega-se as escrituras de posse, para depois deixar o poder aquisitivo falar mais alto, comprar essas propriedades e transformá-las em grandes (e caros) condomínios.
Não é nem um pouco improvável, o condomínio Selva de Pedra, no Leblon, surgiu de maneira até mais agressiva, através de incêndios.
O trabalho nessas comunidades é muito mais difícil do que parece e levanta discussões complexas. Expulsar o tráfico é só o início.
Como disse José Mário, presidente da Associação de Moradores do Santa Marta, estamos entrando num túnel escuro, sem saber o que está do outro lado. Tomara que seja a luz.
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Típica atitude de favelado reclamar até quando recebe ajuda.
Se a polícia não faz nada, os caras reclamam. Se a polícia “limpa” a área, reclamam também.
Por mim tinha que jogar cimento nesses morros e mandar todo mundo lá pra Barra da Tijuca!
Eita, Antonio. Ou eu escrevi mal ou você não entendeu um dos pontos.
É uma questão cultural um pouco maior do que simplesmente “favelado reclama até quando recebe ajuda”.
Volte daqui a pouco e assista o vídeo, se puder. Fala mais dessa questão.
Abs,
Realmente pros moradores deve ser melhor viver na ilegalidade com trafico, do q ter q pagar por casa, tv, luz, gas…. Nao acredito q isto seja pq a pessoa nasceu assim… todos lá sabem q é ilegal.
Eu acho q é o 1o passo pra ordem urbana. Porem, logo ira aparecer um populista de plantao ou um defensor dos “direitos humanos” para repreender esta açao. Fora a chance de um miliciano (ou qq coisa desse naipe q surjaP tomar o morro pra si e instaurar novas ilegalidades.
Veremos onde vai terminar isso tudo.
Que seja luz. Não questiono o pé atrás que os moradores tem em relação a toda a motivação do projeto, eu duvido junto com eles. Mas devem questionar o tráfico que é menos flexível que o próprio Estado – deixado de lado desde a ocupação indevida.
Bruno, você flagrou um choque cultural, que sempre provoca desconfiança e incredulidade. Há também a falta de hábito de aceitar bem o que vem do estado. Gostei de ver o instantâneo do momento.
Boa! Como o Carlos Alberto falou, “vc flagrou um choque cultural” que muitas pessoas não conseguem perceber logo de cara. É muito fácil falar de “fora” sem ir a fundo pesquisando e se informando para saber mais como isso tudo vai funcionar, ou como deveria, quando “assentar a poeira”. Parabéns pela cobertura instantânea.
Parabéns pala matéria! Isso com certeza é um primeiro passo muito importante. Se a gente não confia no estado, faça idéia eles que nunca viram nem de perto e quando assistem é para tomar porrada. Eu torço pelo Rio e espero que todo esse movimento seja para o bem da nossa cidade que só toma paulada, quando o estado faz uma ação que é comum, nada além disso, a gente desconfia. Já tá na hora de mudar isso né!?
Fiquei pensando sobre as novas casas sem espaço para criar animais e hortas. Será que uma casa de arquitetura originalmente brasileira não deveria ter galinheiro, canil? Fiquei pensando que a ligação das pessoas com espaço de terra no morro – ter bichos, plantar comida, ter vizinhos, tendo um caráter muito mais duradouro que o tráfico, seria uma das poucas razões para acreditar que exista luz do outro lado. As casas novas podem acabar com isso.
Parabéns pelo registro.
Moro na rua que da para o Santa Marta.
O que mais me incomoda são os meninos de rua que perambulam as redondesas pedindo aos pedestres dinheiro,pedem para comprar uma fralda ou uma lata de leite na porta das Sendas pra depois venderem e muitas das vezes quando a rua esta deserta assaltam(os menores são os piores), intimidando quem passa.
Finalidade?
Comprar drogras na boca do Santa Marta.
Eu vejo sempre de madrugada eles irem para a favela rindo entre si e consumindo. Voltando desesperados pra conseguir mais dinheiro nas portas das boates e perto da cobal onde tem mais movimento de gente.
São muitos e sempre. Nao da para sair sem que voce seja incomodado por um desses.
Eles estao diretamente relacionados com a favela, a imagem deles esta muito relacionada aos que moram na favela pois eles se comunicam com os do “asfalto” e os do “asfalto”sabem que eles vao pra favela.
É muito cedo para sentir as consequencias dessa ocupaçao. Ainda vejos os meliantes indo e vindo.
Vejo os politicos usando o poder publico de forma midiática. Não confio nos politicos e nem nos grandes veiculos que misturam noticia com jabá quando é uma noticia boa hj em dia eles estao muito misturados.
O que gera uma desconfiança.
O trafico , as milicias ja estao infiltradas no poder publico do Rio. Nosso povo é muito tolerante e a midia alimenta isso com a industria do medo. O que é uma pena.
O trafico que alimenta toda essa violencia no morro e asfalto pode estar por debaixo dos panos nessa historia toda com a parte podre da polícia.
Mas como disse ainda é cedo pra sentir as consequencias como morador.
Torço para que haja uma uniao com os moradores do asfalto com os do Santa Marta, uma troca cultural maior de ambas as partes e que o Estado contribua para que esse passo aconteça.
o estado não pode mais, de maneira alguma, virar as costas para favelização e a situação dos moradores nessas comunidades. espero que a possível mudança no dona marta vire exemplo. parabéns pela matéria, bruno.
Parabens Bruninho. Sensacional o post. Eu moro do lado e nem sabia desse fenomeno acontecendo. Esse choque cultural faz bem como um pequeno exercicio de antropologia para nós, que moramos embaixo mas achando que estamos acima de tudo e de todos. Que há muitas camadas ainda a serem reveladas e resolvidas, isso nao ha duvida. A questão é: Será que querem meter o dedo na ferida mesmo? Ou é mais uma dessas medidas paliativas que assolam o Rio de Janeiro?
Parabéns Bruno, o documentário brasileiro só tem a ganhar com realizadores dispostos a agirem no calor dos acontecimentos.
Seu vídeo, curto na duração mas enorme nas questões que atravessam as falas e as imagens, me faz gostar cada vez mais de assistir documentários.
Grande abraço
Muito obrigada Bruno pela matéria. Eu estava curiosa para saber como os moradores do Santa Marta estava percebendo a mudança de “autoridade”.
Bruno, por sorte, conheci O Esquema dias antes deste post e venho freqüentando desde então. Como uma parte do pessoal, também gostei bastante da matéria, a idéia foi muito boa mesmo e, ainda que não esteja aqui pra discutir o problema do Santa Marta (que é mais distante pra mim, por ter vindo morar no Rio em março), o morro é apenas um reflexo do que acontece no país todo. Acho que a chegada da polícia, ao mesmo tempo que ‘pacifica’ a região e estabelece uma ordem (nem sempre bem vinda, mas imposta), há as questões paralelas, onde, por exemplo, as pequenas ilegalidade deverão ser banidas, causando prejuízo e desconforto de quem vive ali acostumado a uma situação de ordem distinta do que se entende pelo padrão urbano. Fico feliz de encontrar um espaço para uma discussão inteligente e sensível. Boa sorte, parabéns mesmo!!
Do cacete, Bruninho.
Acho que, se o poder público continuar a ação, mas escutando as reivindicações dos moradores, pode dar certo. O que não pode é terapia de choque, ainda que seja de “ordem”.
Abraço,
ps – típica atitude do fascistão enrustido que aplaude o BOPE — claro, porque não tem sua casa invadida pelos Caveiras –, esta de dizer que “favelado reclama até quando recebe ajuda”.
pablopessanha
Prezado Pierre,
O depoimento veemente do primeiro senhor que fala, no vídeo “Túnel
Escuro”, traduz muito bem o sentimento dos moradores da comunidade que são
contra a ocupação da policia. Também expressa o pensamento daqueles que
foram favor. Suas palavras sábias se aplicam ainda à escolha do
samba-enredo deste ano, à queda do Vasco para a Segunda Divisão, à
vitória de Barack Obama (e à derrota de McCain) e, principalmente à
recente crise econômica mundial. Qualquer um, em sã consciência, tem que
admitir: Siri não tem barba. Essa é a real, doa a quem doer.
Abrs,
Pessanha
Bela matéria Bruninho! Espero que tenha luz no fim do túnel mesmo.
Só não sei se esse é o caminho.
Atualmente moro em Sampa, mas gostaria que meus filhos pudessem crescer num Rio mais justo. Me entristece somente os comentários típicos de alguns cariocas preconceituosos e egoístas. Esse tipo de mentalidade é que tem que mudar! Para Barra da Tijuca!
bacana a matéria. a experiência é quase que um tubo controle pras teorias de ciências sociais que se tem nas faculdades…
Bruninho muito legal a matéria e o video, acho muito bom isso, achei que a ocupação fosse algo que todos quisessem mas vejo que não. Comno fica agora com tudo que vem disso, vida nova com pagamento de coisas novas, água, luz, net…como fica isso, não foi colocado no seu video…valeria um novo com essa visão
valeu Bruno ! ! ! pela materia eo video .Sou morador da comunidade e nao estou de acordo com oq o estado esta impondo aos moradores, em diminuir o espaço de moradias removendo os moradores de sua residencia onde podem ter animais domesticos, cultivar hortaliças e plantas ornamentais,area externa para lavagem e secagem de roupas,banho de sol e a claridade do sol durante o dia Q evita o gasto de energia e a privacidade da pessoa . Aglomerando um numero elevado de moradores nos chamados apertamentos !!!!!PARA DIMINUIR GASTOS COM MORADIAS ,mande recados entre em contato VALEU.
Se o Antonio Salada conhecesse o outro lado da comunidade, não iria querer sair daqui. Caso isso não aconteça , terei que concordar com ele. melhor seria se ele é quem tivesse que virar virar estátua de concreto.já que não fizeram a do Michael Jackson ,que seja feita a do Sr Antonio Salada.Quanto a Polla,a questão não é pagar ou deixar de pagar e sim como pagar e o que pagar.concordo em ter que pagar todos os impostos,mas de acordo com as nessecidade de cada um. E que nós tenhamos por direito tudo pelo o que nós pagamos.ah! E antes da ocupação policial e da legalidade nós tínhamos segurança particular,luz,agua,tv a cabo sky,internet,baile funk,pagode,forró e muito mais.e o melhor disso tudo:sem pagar nada. E agora não temos a metade disso. e sem falar que agora temos também ladrão,brigas,fofocas e muitas outras coisas ruins que antes não podia existir numa comunidade.agora se vocês quiserem saber ou conhecer melhor a nossa comunidade modelo.Venha nos visitar, estaremos aqui de braços abertos .
/URBe
por Bruno Natal
Cultura digital, música, urbanidades, documentários e jornalismo.
Não foi exatamente assim que começou, lá em 2003, e ainda deve mudar muito. A graça é essa.
falaurbe [@] gmail.com
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