Luis Eduardo Soares no Roda Viva: indispensável assistir
assista os blocos 2, 3 e 4.
Não se discute que a expulsão de traficantes do Complexo do Alemão é um fato positivo. É uma parte do problema que precisa ser resolvida, em todas as comunidades.
Tomada pela euforia, a cobertura da grande imprensa se absteve de dar espaço a uma série de questões que são fundamentais e inerentes ao problemática da violência urbana.
O problema é muito maior do que uma mera polarização entre policiais e bandidos. Quem dera fosse tão simples.
Por isso, compartilho aqui alguns textos que considero de leitura fundamental, mesmo para quem não é do Rio, para o entendimento do que está de fato está em curso — e em jogo.
Recebi essas fotos de uma amiga. Foi assim que ela encontrou seu carro na terça de manhã em Copacabana, de onde ela saiu na segunda a noite de táxi, fugindo do tiroteio entre polícia e traficantes na ladeira dos Tabajaras.
Que cidade legal, que situação razoável você voltar para buscar seu carro, no dia seguinte a um gigante enxame de bezouro sem asas ter te expulsado do trabalho, e encontrá-lo crivado de balas.
Pior é ter que ficar alegre com a “sorte” de não ter ninguém dentro.
A idéia era simplesmente chegar e subir as ladeiras, sem pedir autorização a ninguém, exatamente como se faz transitando entre bairros no asfalto da cidade.
Santa Marta
Dado o tamanho da novidade, não custava nada avaliar a situação falando com os policiais na viatura estacionada na subida da ladeira:
– E aí, é só meter o pé mesmo?
– Pode subir, tá na boa. Acabou de subir um monte de jornalistas com o comandante do 2o Batalhão, pelo bondinho.
– Então não tem bandido na área mesmo?
– Olha, subindo pelo bondinho tá tranquilo. Mas deve ter vagabundo escondido na mata ainda.
As iniciais do Comando Vermelho num muro: cicatrizes recentes
O bondinho é um plano inclinado que funciona como um elevador para os moradores da favela mais íngrime do Rio, onde vários repórteres aguardavam para ser levados ao topo do morro pela secretária de educação e pelo comandante da polícia.
A perspectiva de uma visita guiada oficial era desanimadora. Nada podia estar mais distante do objetivo original de simplesmente visitar a favela como quem vai a qualquer outro bairro da cidade. Sem falar na fila de mais de meia-hora pra subir no bondinho.
A grande revolução que pode ser promovida por uma comunidade sem tráfico é justamente possibilitar o encontro de duas realidades cada vez mais distantes.
O Rio de Janeiro precisa se tornar uma cidade só, sem separações, para se reerguer e reestruturar. O que isso pode trazer de bom é a livre circulação de pessoas e idéias.
Pierre Azevedo e dois de seus alunos de percussão
Decidi subir a pé e logo conheci o Pierre Azevedo, diretor da ONG Atitude Social. Baixista e ex-morador da comunidade, ele dá aulas de percussão para criançada na Casa de Cultura Dedé.
Tendo Pierre como guia (mas não uma escolta, pois realmente o morro estava calmo) para não me perder pelas vielas e chegar até o topo, rapidamente comecei a conversar com alguns moradores.
Por ingenuidade, não esperava o tipo de reação e as resposta que ouvi quando comecei a perguntar sobre as primeiras impressões da ocupação policial e a saída do tráfico.
Não ouvi ninguém reclamar da partida dos traficantes, porém a maior parte das pessoas, além da incredulidade, não acredita muito que isso irá durar. Mais do que isso, estão realmente incomodadas com o choque de regras.
Eletricidade no ar
Durante o passeio, ouvi diversas reclamações: que haverá horários para as coisas funcionarem e regras a serem seguidas, as bebedeiras agora vão ser vigiadas, que estouraram a central clandestina de tv a cabo, de que as novas casas e a urbanização impedem as criações de animais e hortas em chácaras… E de como tudo isso altera o ambiente da comunidade como eles a conhecem.
É natural que seja assim. A experiência dessas pessoas com a presença do Estado é, em grande parte, negativa. Além disso, por mais paradoxal que possa soar, existe uma liberdade proporcionada pela ausência do Estado que é difícil de perder.
A frase de um morador, em resposta ao meu argumento de que as melhorias sociais e urbanísticas certamente viram acompanhadas de responsabilidades e deveres, resume bem a questão: “eu não fui criado assim”.
Esse é o ponto central de qualquer projeto que pretenda integrar as favelas ao resto da cidade. Coisa que parecem lógicas e normais no asfalto, são totalmente alienígenas na favela.
Assim como a noção de comunidade desses lugares dá um banho no resto da sociedade, onde vizinhos de porta num mesmo prédio mal se cumprimentam, o que dirá se ajudarem.
A meninada faz pose
Há, claro, também muita desconfiança em relação as reais intenções de um projeto desses.
Da maneira que são hoje, as favelas são em maior parte ocupações ilegais, sem escrituras. Portanto, mesmo algumas delas (as da Zona Sul) estando situadas em áreas nobres, a área não pode ser negociada.
Numa região sem mais um palmo de área livre pra construir, pode ser que estejam preparando o terreno para especulação imobiliária.
Estrutura-se o local e entrega-se as escrituras de posse, para depois deixar o poder aquisitivo falar mais alto, comprar essas propriedades e transformá-las em grandes (e caros) condomínios.
Não é nem um pouco improvável, o condomínio Selva de Pedra, no Leblon, surgiu de maneira até mais agressiva, através de incêndios.
O trabalho nessas comunidades é muito mais difícil do que parece e levanta discussões complexas. Expulsar o tráfico é só o início.
Como disse José Mário, presidente da Associação de Moradores do Santa Marta, estamos entrando num túnel escuro, sem saber o que está do outro lado. Tomara que seja a luz.
URBeTV: o curta-documentário “Santa Marta, o túnel escuro” doc e fotos: Bruno Natal
Devido aos problemas para subir o vídeo no YouTube e publicar junto com o texto, resolvi fazer um post separado só com o mini-doc “Santa Marta e o túnel escuro”, para os assinantes do RSS receberem o aviso.
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/URBe
por Bruno Natal
Cultura digital, música, urbanidades, documentários e jornalismo.
Não foi exatamente assim que começou, lá em 2003, e ainda deve mudar muito. A graça é essa.