segunda-feira

9

novembro 2015

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#AgoraÉQueSãoElas, por Rafaela Rocha

Written by , Posted in Urbanidades

agoraquesaoelas_Dario Oliveira:Código 19:Estadão Conteúdo
foto: Dario Oliveira/Código 19/Estadão Conteúdo

Terceiro post da série ‪#‎AgoraÉQueSãoElas, movimento convocado pela Manoela Miklos. Após a repercussão da série de posts femininos #MeuPrimeiroAssédio, Manoela propôs que homens cedessem seus espaços editoriais para que mulheres ocupassem e pudessem propagar o próprio discurso.

Agora é a vez da Rafaela Rocha:

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(des)Construindo o macho alfa
por Rafaela Rocha

Hoje uma foto de um menino de 6 anos todo mijado me tocou profundamente. Na legenda, a mãe explica que o episódio se repete com frequência e é resultado da retaliação de uma professora da rede pública (alô estado laico!) que insiste em impor sua doutrina religiosa à criança. Depois que os pais, ateus, educadamente enviaram um bilhete pedindo que ela parasse, a “educadora” passou a perseguir o menino.

O relato da mãe é de cortar o coração. Ela está vendo todo o amor puro, a inocência e vitalidade de seu filho, ser transformada em medo e raiva. E eu fiquei aqui pensando: como é que esses episódios vão reverberar no futuro? Essa vergonha, essa humilhação, esse medo e essa raiva vão ser canalizados pra onde no subconsciente desse menino? Por que por mais que a notícia reverbere e a professora seja punida, os sentimentos do menino já foram sentidos e, portanto, já fazem parte dele. Por mais que a mãe explique que a professora é louca, que aquilo não é culpa dele, é dificil aplacar com a compreensão intelectual (ainda mais aos 6 nos de idade) algo que foi processado pelo emocional e pelo sensorial.

E aí fiquei me perguntando: será que esse menino vai ter ódio de mulheres e vai refletir isso nos seus relacionamentos? Será que vai ficar impotente? Ou adepto de golden shower? Será que vai culpar a mãe pela sua escolha religiosa ter causado a ele essa humilhação? Será que vai virar pastor? Será que vai bater em professoras? Será que vai virar educador? Ou abrir uma ONG para crianças vítimas de violência? Todos os caminhos são possíveis, tomara que o dele seja de luz, mas os monstros nascidos desse episódio com certeza estarão à espreita.

Convivendo com crianças (trabalho com elas quase todos os dias), fica mais fácil ver a fragilidade da nossa formação emocional. Antes de qualquer linguagem, nascemos puro prazer e dor. É só o que sabemos sentir, e todo o resto é decorrente desses pulsares primordiais. Aos pouquinhos vamos abrindo nosso leque emocional. O medo é a antecipação da dor (imaginada ou real) e pode gerar defesas precipitadas. A raiva as vezes é a válvula de escape para uma dor internalizada, que as vezes é derramada como agressividade sobre o outro pela pura incapacidade de se chegar à sua origem real. A carência, também derivada de alguma dor interna, pode vir na forma de excesso de carinho condicional ou agressividade (pelo medo da dor da rejeição). Os caminhos nesse caso, também são diversos e infinitos, e vão sendo moldados pelas experiências familiares, sociais, pelo meio ambiente, pela cultura dominante, etc

Somos todos bichos frágeis, mas no caso do masculino, a fragilidade parece que incomoda mais. A terceira lei de Newton afirma que “a toda ação há sempre uma reação oposta e de igual intensidade: ou as ações mútuas de dois corpos um sobre o outro são sempre iguais e dirigidas em sentidos opostos. Isso não difere muito do princípio Taoísta de Yin e Yang, “as duas forças fundamentais opostas e complementares que se encontram em todas as coisas”. o yin é o princípio feminino, a água, a passividade, escuridão e absorção. O yang é o princípio masculino, o fogo, a luz e atividade.

Lá atras, quando fugiamos de animais ferozes e precisavamos viver em constante estado de alerta porque a regra era matar ou morrer, o masculino, yang, ativo, dominador, precisava pulsar dentro de nós. Foi isso que nos permitiu dominar os elementos, adequar o nosso meio ambiente às nossas necessidades. Esse estado de alerta constante requer um tipo de atenção que o neurocientista e psicólogo Lester Fehmi (Universidade de Princeton, EUA) denomina de “estreita” e “objetiva”. Para operar nesse estado, o nosso cérebro e todo nosso corpo gastam muita energia e concentram muitos esforços, pois esse tipo de atenção, biologicamente falando, é ativado por situações de stress.

Foi esse tipo de atenção que nos manteve vivos, que nos permitiu perpetuar a espécie e, como toda característica bem sucedida do ponto de vista evolutivo, foi sendo passado adiante. E assim o pulsar Yang foi dominando o mundo. Só que aos poucos fomos desenvolvendo sistemas mais abstratos de pensamento que permitiram que nossas relações saissem do campo limitado do instinto e se desenvolvessem no campo “civilizado” das idéias, da linguagem. Aos poucos fomos entendendo que tinhamos escolha e, mais do que isso, tinhamos a danada da empatia. Mas de certa forma, muitos de nós continuamos viciados no cortisol que nos inunda pelo stress, e reféns desse tipo de atenção, que é apenas um dos vários possíveis. Mas vai mudar algo construído construído com tanto afinco há milhares de anos? Dá trabalho pra caceta! O patriarcado opressor é a zona de conforto, é o que conhecemos, e por mais que alguns já tenham acordado pro seu mal, pra sua desigualdade, a grande maioria ainda vibra nessa frequência Yang e acredita ser ela a única possível, porque é sempre mais fácil lidar com a dor que já conhecemos do que com o desconforto do desconhecido.

E aí, a moça que humilha a criança por conta de suas certezas religiosas que nada mais são do que construções que mente consciente dela desenvolveu para aplacarem uma dor interna subconsciente, não consegue enxergar a realidade daquela criança. E assim vai perpetuando um ciclo de medo e agressividade do qual todos fazemos parte, onde somos todos, simultaneamente, vítimas e opressores. Só que cuidar disso, encontrar a chave pra abrir os próprios porões escuros, aqueles que foram trancados lá na infância e cujos fantasmas continuam assombrando toda a casa onde vivemos, dá trabalho. Tem gente que já leva tanta porrada da vida, ou tem que correr tanto, que simplesmente não consegue ter o “luxo” do auto-conhecimento. Além disso, dá medo. “Sei lá o que tem lá dentro, melhor não mexer”. Cega ou, para usar o termo do Dr Fehmi, focada na sua dor, essa professora passa por cima do pulsar natural de um ser que ela deveria estar ajudando a moldar, e contribui para que os fantasmas que vão assombrar aquele porão sejam ainda mais assustadores e às respostas à eles, ainda mais violentas.

Epa, mas o tema do #AgoraÉQueSãoElas é machismo, é direito da mulher, é combate aos desmandos medievais de Eduardo Cunha e do seu PL 5.069/2013! Sim, e a meu ver, uma coisa está diretamente ligada a outra. Pode ter certeza, o porão interno do Eduardo Cunha (e de Bolsonaros, e de Felicianos da vida) deve ser lotado de monstros assustadores, barulhentos, violentos, e ele segue lá no último andar da sua mansão interna, construída em cima de certezas absolutas, gritando alto, fiscalizando pela janela a vida dos outros, em atitudes desesperadas pra manter o medo em segundo plano.

Acredito que a ÚNICA forma de eliminarmos esse pulsar opressor que faz parte de todos nós é olhar pra dentro. Não tem receita de bolo. Cabe a cada um tentar compreender e, se for o caso, desconstruir, aqueles hábitos e atitudes criadas pra mascarar essa dor, e não é fácil. Requer requer paciência, humildade, escuta, dedicação… coisas que andam muito fora de moda na nossa sociedade contemporânea. É comum ouvir “ah, não tenho paciência, não consigo ficar parado, não pensar em nada”. Mas o segredo está justamente aí: ninguém “consegue”, por isso mesmo a importância de pratica-la. Estamos tão acostumados a fugir de nós mesmos que esse encontro às vezes parece impossível. Nos tornamos mestres da distração, da invenção de prazeres externos para fugir da realidade interna. Quando esses falham (porque nunca vão dar conta de preencher aquele vazio que é só seu), ficamos nervosos, estressados, e buscando doses cada vez maiores de anestesia, mas a verdade amigx, é que não tem iphone novo, dólares na suíça ou ‘aleluia irmão’ que dê conta de faxinar esses seus quartos escuros trancados às 7 chaves.

Costumo comparar as práticas meditativas ao ato de fazer cocô. Se ficamos 2, 3, 4 dias sem ir ao banheiro, nosso corpo sente, entendemos que tem algo de errado. Pois bem, nossa mente produz merda todos os dias, só que diferente da matéria, a gente acha que essa merda mental / emocional pode ficar lá guardada pra sempre, que tá de boa. Não tá. Pode ter certeza que por algum canto essa merda tá escoando ou que, algum dia, essa barragem de lama tóxica vai estourar.

O escritor americano Norman Mailer disse a ansiedade é O estado do homem do século 20 (nesse caso homem = humanidade. ah os detalhes…) Já estamos no século 21 – que tal mudarmos de estado?

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