2015, o ano em que menos resenhei shows na vida. Foi quase tudo na base da legenda das fotos no Instagram. Faltam palavras, ficam as memórias evocadas pelas imagens.
É invejável a disposição de Caetano. Em temporada de quatro shows (até domingo, ingressos esgotados), ontem o compositor estreou a turnê de “Abraçaço”, pisando no palco as 23h30 de uma quinta feira para um show de duas horas. Aos 70 anos.
Não que a idade seja relevante por si só. O que impressiona é que numa época da vida em que muita gente em sua posição estaria de sandália na praia, desacelerando ou, de maneira justa, aproveitando o próprio legado artístico, Caetano está pulando, com uma banda que tem metade da sua idade e – mais importante – criando material novo e relevante.
A “opinião pública”, se é que isso existe ou deva ser levada em conta, divide-se entre chamar de “múmia” os artistas mas velhos que seguem no mesmo caminho consolidado ou de “metido a moderninho” os que tentam se renovar. Goste ou não, esse fato é inegável que tentar se renovar é, no mínimo, mais arriscado, pra não dizer mais díficil.
Longe de ser apenas justificativas para um vôo furado, Caetano comprova ao vivo que continua seu caminho, sempre adiante. E se não for por nada mais, só o clássico instantâneo “Estou Triste” já valeria o disco. Felizmente, tem muito mais.
Como de costume, a Banda Cê, formada por Pedro Sá (guitarra), Ricardo Dias Gomes (baixo) e Marcelo Callado (bateria), é uma atração a parte. Três discos depois, totalmente integrados e sem vergonha, o trio brincou de reproduzir o abraçaço da capa do disco, simulando uma divindade hindú e seu múltiplos braços ao redor de Caetano. Será uma pena se esse for mesmo o último trabalho do grupo.
Além da precisão das execuções, bom gosto dos timbres e criatividade para resolver com apenas três instrumentos arranjos complexos de outras músicas, o tempo da banda é talvez o sinal mais palpável de sua maturidade. Em músicas como “Triste Bahia”, do “Transa” (alô, Caetano! Queremos “Transa”!) a banda acelera e desacelera o compasso, coesa, como se uma só mão deslizasse o pitch do palco inteiro. Uma belezura que, ainda bem, podemos ouvir sempre juntos ao menos 2/3 (baixo e batera) no Do Amor.
Caetano tocou 10 das 11 músicas do novo trabalho (o Leo dá os detalhes do repertório), coisa que seria complicada até mesmo pra ele. A vantagem de fazer o show quatro meses após o lançamento do disco é que as pessoas já conheciam as música novas-já-não-tão-novas. O ambiente era de familiaridade com todas canções apresentadas.
E fez de tudo. Letras com tom de tuitadas (Caetano se divertiria no Facebook, aposto, talvez não mais agora), com frases feitas e gritos de ordem, como em “A Bossa Nova É Foda”, teve devaneios quase senis ao recitar, livro na mão e tudo, “Alexandre” (o Grande) e divertiu-se. E como divertiu-se, isso dava pra ver.
Tocou a plateia mais do que conversou, dançou, vibrou, se mostrou e contagiou. Artistas e público, saíram todos sentindo-se abraçados.
(poucos vídeos do show online, hein… pessoal tá cansando de upar? capaz)
Começando a ouvir o “Abraçaço” do Caetano, sua despedida da Banda Cê, fechando a trilogia. Entrei, aleatoriamente, por “Estou Triste”.
Se o resto das músicas for metade dessa, é um discaço, porque, taquilpariu… Tenta aí ouvir essa música menos de três vezes seguidas. E olha que nem tô triste!
Podem falar o que quiser do Caetano – sua genialidade reside mesmo nos extremos que habita – mas aos 70 anos o cara estar dando a cara a tapa e produzindo coisas desse nível, experimentando, se atualizando (mesmo que muitas vezes dê errado) é admirável.
Existem muitos caminhos para um artista se atualizar musicalmente. Algumas delas: agarrar novidades e forçar a barra em modernices; colar em alguém (um produtor, músicos) que consiga fazer isso por você; ou cair dentro, misturar-se a produtores e músicos novos, aproximar-se das novidades, envolver-se e criar algo original.
Das opções listadas, a terceira é sem dúvida a que exige mais e também a que dá melhores resultados. Por mais óbvio que seja, nem sempre esse é o caminho listado. Não tem nada a ver com idade ou geração, está mais relacionado a postura artística. Exatamente por isso não é surpresa ver que Gal Costa – ao contrário de tantas cantorinhas da nova geração – escolheu o caminho mais difícil.
Pelo mais puro merecimento, cantando igual uma menina, voz intacta, Gal (res?)surge em “Recanto” como se o tempo não tivesse passado – ou não tivesse deixado que o tempo tenha passado por ela, no que pese os poperô cafona/maduro entre essa Gal e a dos anos 70. Quem cresceu nos anos 80 pode não ter lá as melhores lembranças; um disco e show como esses fazem o favor de ajustar as contas.
Concebido e escrito por Caetano Veloso, o eletrônico “Recanto” surpreendeu mais do que chocou no lançamento, ano passado. Surpreendeu pelo inesperado – Gal sobre bases eletrônicas do Kassin, Duplexx – causando estranheza. Ainda que alguns momentos trip hop tenham nascido datados, ao menos datam uma sonoridade boa. Mais que isso, sublinham a coragem de experimentar de Gal.
Acompanhada por Pedro Baby (violão/guitarra), Bruno Di Lullo (baixo/guitarra) e Rafael Rocha (MPC/bateria), ao vivo a viagem eletrônica de Gal funciona muito melhor. Conta muito para isso a esquentada que dá ver os músicos executando os temas, a bonita iluminação e, sobretudo, a presença magnética de Gal. E a voz, intacta (já falei isso?), atingindo as notas em clássicos cantados no tom original (a “mara-voz”, ela bem sabe).
Não vem à mente diva nenhum arriscando algo parecido no mundo, transgredindo de maneira expontânea, sem ser através de participações em projetos dos outros. Dando um passo além, Gal trouxe clássicos do seu repertório para a estética proposta, facilitando o entendimento para um público distante dessas sonoridades, pegando os fãs pela mão para conhecer outros sons.
As novas “Neguinho”, “Miami Maculelê”, “Tudo Dói”, “Recanto Escuro” ou “Autotune Autoerótico” são intercaladas com “Força Estranha”, “Vapor Barato”, “Baby”, “Barato Total”, “Dom de Iludir”, “Folhetim”, “Meu Bem, Meu Mal” ou “Modinha Para Gabriela”, ora as antigas transformadas pelo novos arranjos, ora em voz e violão, para dar uma moleza pra plateia. Ponto pra ela.
Emulando seu dueto com Tim em “Dia de Domingo”, fazendo os graves da voz do síndico, ou cantando neguinho é nós em “Neguinho”, cantando sozinha sobre um arranjo de violão e bateria minimalista ou sobre uma base de baile funk, Gal está sobrando.
Quem gosta de música sonha com momentos assim (ainda mais no Brasil, quando medalhões costumam ir por caminhos bem estranhos e caretas com a idade), poder ver um show de um artista importante que não tenha parado no tempo, sido modernizado na marra ou sofrido com uma falsa sofisticação dos arranjos. Gal, com a banda certa, cantando clássicos sem mofo, num dos shows do ano. Que presente.
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Não foi exatamente assim que começou, lá em 2003, e ainda deve mudar muito. A graça é essa.