Rio em movimento
Written by urbe, Posted in Urbanidades
Enquanto espero para atravessar a Mena Barreto, em Botafogo, o senhor ao meu lado, com os olhos embaçados pela catarata, começa a falar sozinho. Aos poucos o volume vai aumentando, de maneira que acabo prestando atenção no que ele diz, mesmo sem querer.
Ao perceber que estava ouvindo, ele vira-se e passa a falar diretamente comigo. Começando por frase desconexas, alguns “o Senhor é nosso pai” e coisas assim, os olhos foram ficando úmidos e derramaram quando ele finalmente bateu no braço pra dizer que “o sangue que corre aqui dentro é negro! Eu tenho o peito vermelho!”.
O motivo do choro era bem simples: ele havia sido chamado de “macaco”, em Laranjeiras, algumas semanas antes e ainda doía. Um senhor, catando latinhas. De 60 e poucos anos. Sem raiva, apenas frustração, ele falou de como não entendia esse tipo de comportamento, com o qual ele teve que conviver a vida toda.
Ele não pediu nada, não foi agressivo ou rancoroso. Tudo que ele queria era desabafar com alguém. Atrasado para chegar ao cartório, que fechava dali à cinco minutos, resolvi parar e escutar.
A contrário do estereótipo do malandro sabichão (um mito que se tornou maior que a realidade) sugere, o que define os habitantes do Rio é — ou era — uma postura mais relaxada em relação à vida. Gente que não dispensa um papo, que não esquece de perceber quando o dia está lindo e outras ingenuidades tão saudáveis.
Como numa cidade pequena, povoada por pessoas que escolheram o mesmo lugar para viver por buscar estilos de vida minimamente parecidos, o Rio tem um senso de comunidade, muito mais do que de metrópole.
Obviamente, com o crescimento desordenado, esse filtro se perdeu. Embora em alguns bairros os moradores ainda se cumprimentem na rua, mesmo sem se conhecer de fato, pouco a pouco (ou muito a muito, como preferir), isso está acabando. O fim da carioquice.
No ônibus, voltando pra casa, sem ter perdido o horário do cartório, assisto uma senhora, sobrevivente de um Rio cada vez mais distante, oferecer ao trocador um saquinho de biscoitos caseiros, daqueles embrulhados em plástico transparente, com um laço pra fechar. Sem graça e surpreso, ele aceitou, guardou e explicou que comeria depois.
Ele fica enjoado quando come com o ônibus em movimento.
Fala Bruno,
Li o seu texto e fiquei profundamente emocionado. As pessoas estão perdendo a inocência nos olhos. Parabéns amigão!
De volta as URBanidades!
O carioca é um ser sensível individualemente, o problema é o coletivo, como diria um amigo…
Pois é Bruno, concordo plenamente com vc e o João.
As pessoas estão tão agitadas e cada vez mais so pensando em si, no seu “mundinho”,que esquecem que existe um mundo, o “verdadeiro”, em sua volta. Nele, existem outras pessoas como a gente,que choram, riem, tem problemas e sentimentos. Pode parecer meio clichê, ou fanfarronice o que eu vou escrever. Mas, se cada pessoa parasse todo dia, por alguns minutos, para reparar o que acontece ao seu redor, iria ver que nos podemos sempre ser úteis a todo momento. Um bom exemplo disso tudo é o filme “Crash” que, apesar de se passar em Los Angeles, mostra muito bem essa idéia. Para quem ainda não viu, vale muito a pena. O filme é maravilhoso!
Abração,
Rod
Aê, finalmente…
Fazia tempo que você não escrevia esse tipo de texto. Só tava dando serviço de shows.
Agora, FINALEIRA classe A, hein?
Fosse futebol, tinha começado com um toque sem muita pretensão na zaga e terminado com um gol de placa.
pois é diego, tenho andado tao atolado de trabalho que não tem dado tempo de atualizar direito, por isso a chuva de serviços.
não entendi essa “finaleira”… o que é isso?
Boa moleque, boa…
Excelente texto.
“postura mais relaxada em relação à vida. Gente que não dispensa um papo, que não esquece de perceber quando o dia está lindo e outras ingenuidades tão saudáveis.”
Sempre tive esta opinião também, além de praticá-la 24horas por dia. É mais legal viver assim.
Espero que isso não morra. Pelo menos que viva até eu morrer!
Parabéns pelo texto!
abs
Martino
uma vez eu fiz uma experiencia na lagoa rodrigo de freitas, onde fui dar a volta caminhando as 6 da manha: olhava e dava um “bom dia” simpático pra todo mundo que passava, como se tivesse numa cidade de interior. O resultado foi interessante: Todas as pessoas com menos de 30 ou ignoravam ou olhavam com uma cara “quem é esse cara?” ou “te conheço?”.
todas as pessoas mais velhas – 40, 50 responderam, mesmo que só pra corresponder educadamente. As acima dos 50 ainda abriam um sorriso.
são os reflexos do estilo de vida paranóico-urbano?
parabens, texto classe A.
é realmente incrivel a sensacao de dar atencao a alguem que nao recebe normalmente e ver o quanto um gesto simples como um sorriso significa pra uma pessoa dessas.
morei em Los Angeles e senti isso ainda mais forte por la. as pessoas parecem nao acreditar qdo vc fala bom dia ou sorri. eh maravilhoso!
pena q nem tds pensem assim…
bjs
Parabéns!
Vou confessar que isto é um assunto que me intriga muito! Sou do tempo em que, entrando num ônibus lotado ou estando sentado, o cidadão sentado oferecia para segurar sacolas ou até mesmo oferecia seu assento. Mas hoje em dia…fico envergonhado com o que presencio, principalmente dos mais jovens!
Mas que bom, ler…poder falar sobre!
De grande valia!
Abração!
grande texto, brunão. veja o número de comentários. foi emocionante mesmo.
o mundo anda abrutalhado, sem tempo, acossado por seus prazos e compromissos e se esquece de auferir o lucro social, o da boa vizinhança, do altruísmo, ou simplesmente de uma mínima atenção à realidade que não a sua. no dia em que as pessoas conseguirem se colocar no lugar das outras, vamos experimentar uma grande revolução. é só lembrar daquele mandamento: “ama ao teu próximo com a ti mesmo”.
das duas uma: ou ninguém nunca escutou falar disso ou geral não deve ter um pingo de amor próprio.
Adorei o texto, simples e emocionante. Que bom que você pode parar para ouvir, mesmo estando com muito trabalho e na “correria”.
O Rio acabou… Ha muito tempo, claro. Acabou pq acreditou numa mentira sobre si mesmo. E enquanto as pessoas acreditarem que essa mentira realmente existiu – a do cordial carioca – o Rio nunca mais vai existir novamente.
/URBe
por Bruno Natal
Cultura digital, música, urbanidades, documentários e jornalismo.
Não foi exatamente assim que começou, lá em 2003, e ainda deve mudar muito. A graça é essa.
falaurbe [@] gmail.com
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