Nosso maior crime
Written by urbe, Posted in Urbanidades
Passados alguns dias do crime que horrorizou o país, o URBe convidou o antropólogo Antonio Engelke para escrever um texto sobre a exigência de maiores punições que aflora na sociedade logo após casos como esse.
montagem pescada no Pensar enlouquece.
Nosso maior crime
por Antonio Engelke
A morte do menino João Hélio reacendeu o debate sobre a ineficiência do sistema penal brasileiro. A opinião pública pede a redução da maioridade penal e a criação de leis mais rigorosas, como a pena de morte. Afirma-se, com alguma razão, que a impunidade estimula o crime, que um rapaz com idade para exercer sua cidadania e escolher seus representantes deveria, por coerência de princípios, ter o dever de responder legalmente por seus atos. Tais protestos, inflamados pela dramaticidade do episódio, são necessários e oportunos. Contudo, eu gostaria de lhes adicionar alguns elementos, não para sugerir um remédio, mas para iluminar questões até agora pouco observadas.
A razão utilitária não basta para explicar a criminalidade atual. Se os bandidos sabem que o excesso e a brutalidade só tendem a lhes ser prejudiciais, posto que atraem a atenção da mídia e da polícia, por que agem desta forma? Certamente não é apenas porque tenham a certeza de impunidade. Há algo mais aí: o descaso para com a vida humana, a ausência de sensibilidade a alguns dos valores fundamentais que nos distinguem enquanto homens civilizados. Mas – e este é o ponto – tal dessensibilização para questões referentes à vida humana não é exclusividade deles, marginais. É também e sobretudo nossa. É parte deste caldo individualista de cultura no qual estamos todos mergulhados. Vemos seus reflexos toda vez que um “pitboy” espanca alguém numa boate, ou quando um empresário sai de casa para trabalhar numa empresa que degrada os rios de Minas Gerais ou numa multinacional que compra mão-de-obra quase escrava num país distante qualquer.
Não quero desviar o foco da discussão, tampouco “passar a mão na cabeça” dos bandidos que mataram João Hélio. Peço ao leitor paciência, e que acompanhe meu raciocínio. Se fiz questão de lembrar que a banalização da violência não é exclusividade de certos indivíduos, mas sintoma de uma crise mais abrangente, foi para destacar uma verdade amiúde esquecida em momentos de grande comoção como este: que o crime é também uma construção social, e não apenas um desvio individual. Isto é importante na medida em que tem implicações diretas na organização do debate sobre as maneiras de lidar com a criminalidade.
Se o crime é encarado como um desvio individual, a discussão gira em torno da maneira mais eficaz de vigiar e punir. Se, por outro lado, presta-se atenção também às dinâmicas sociais que o estruturam, a discussão ganha contornos políticos. Simplificando bastante, podemos afirmar que os Estados Unidos são um exemplo do primeiro caso, e a França, do segundo. Não quer isto dizer que não existam nos EUA leis específicas de cunho social com impacto nas taxas de criminalidade, e muito menos que a França seja o modelo perfeito a ser imitado. Ambas as alternativas têm seus méritos e limitações.
Mas é no meio-termo que reside o desafio. O atual debate sobre a legislação é bem-vindo, de fato; os sistemas penal e carcerário necessitam de reformas urgentes. No entanto, a atenção exclusiva à dimensão individual do crime nos cega para seu contexto social – o que não é pouca coisa em se tratando de Brasil, o segundo país mais desigual do mundo. Pode parecer paradoxal, mas se nos limitarmos somente a pedir mais leis e mais cadeias estaremos ajudando a despolitizar o debate. A conseqüência mais perversa desta despolitização é depositar somente na esfera jurídica a esperança de resolver um problema cujas raízes só podem ser tocadas pela ação política.
O texto mais sensato que li sobre assunto. E é sintomático que ele tenha sido publicado depois da poeira baixada.
Parabéns, Bruno.
Valeu, Diego.
Só pra esclarecer, esse texto foi escrito pelo antropólgo Antonio Engelke, à convite do URBe.
Abs,
muito lúcido o texto.
lembro que há muito tempo quando sugeriram majoração nas penas para crimes hediondos, um especialista foi ao musikaos, programa do gastão na cultura, e disse que isso não dava certo: “o meliante não deixa de delinqüir por causa de uma pena maior. ele não pára para pensar ‘se eu fizer isso são mais 5 anos…’, ele simplesmente faz e acabou”.
os mecanismos das nossas fábricas de “bandidos” não são esmiuçados e parece que nem há um esclarecimento ou vontade política ou simplesmente a boa vontade para isso. querem punir, querem matar, mas entender a gênese das tragédias não.
em tempos de tropas de elite sendo enviadas à nova guanabara para guardar nossas fronteiras, não se ouve falar na criação de um exército de soldados poderosos, instruídos, esclarecidos, bem pagos e transformadores: um exército de professores.
Parabéns pelo texto Antonio. Esta muito bem redigido, concordo plenamente com tudo que você disse.
Até quando?
Muito boa idéia de chamar o Antonio Engelke para escrever no URBe sobre o tema. Muto bom texto Antonio!
Só fico pensando que é um fato de que crimes hediondos cada vez mais são cometidos por menores e a partir do momento que isso é um fato, não repensar essa situação é ruim também. Mas é claro que o problema mesmo está muito mais em baixo, está na falta de empenho/dedicação integral dos políticos na educação/saúde do povo e já que isso, infelizmente, não acontece nunca, o que que se faz? Nem um nem outro?
Abraços,
Filips, sua questão é boa — é a pergunta dos pragmáticos. O raciocínio é mais ou menos o seguinte: “Se a ação política demora, é lenta e muitas vezes ineficaz (isso quando ela existe…), então temos que procurar fazer alguma outra coisa de resultado mais imediato. O que não dá é para não fazer nada”. Concordo. Mas só para ilustrar um pouco como as coisas são mais complicadas, mesmo uma reforma judiciária passa por questões políticas. A maioridade penal, por exemplo. Se reduzida para 16 anos, as cadeias brasileiras sofrerão um aumento significativo de contingente — e elas já estão saturadas hoje. Isso significa que seria preciso investir na ampliação do sistema carcerário: mais prisões, contratação de pessoal, e toda a burocracia envolvida (lavanderia, alimentação, médicos, assistentes do Estado etc.). Ou seja, o governo teria que mexer no orçamento que já está aprovado para este ano — de onde sairiam os recursos extras? Que outra área contemplada no orçamento seria prejudicada em prol da reforma carcerária? E tome discussão na Câmara para aprovar a nova medida…
Mas o principal, acho eu, é que mesmo assim o problema persistiria. Tens alguma dúvida de que os bandidos iriam começar a dar preferência a moleques de 12, 13, 14 e 15 anos? E aí, quando surgissem crimes hediondos cometidos por garotos de 12 anos? Reduziríamos uma vez mais a maioridade penal?
Volto a dizer: não tenho respostas para estes problemas. O que tenho somente é a convicção de que a solução passa mais pela conscientização política da sociedade como um todo do que pelo mero apelo a mais leis e cadeias.
Abração,
Antonio
“….solução passa mais pela conscientização política da sociedade como um todo do que pelo mero apelo a mais leis e cadeias”…..
Enfim, desculpe o termo: fudeu.
Na verdade Antonio, esse é um dos principais problemas da sociedade brasileira – como um todo = conscientização.
A constentação da falta completa conscientização é o que difere um bando de uma sociedade: a condição pscicológica de unicidade – união. Sociedade funcionalmente é a interligação dos indivíduos.O que é extamente oposto à realidade brasileira, em todos os níveis e classes sociais, a não ser em jogos da Copa e no carnaval.
Tenho um certo tom niilista; apesar da esperança, aceitar que está cravada na raiz da cultura brasileira, no comportamento individual da maioria – o individualismo -cruel e imparcial, da necessidade de sobrevivência.
/URBe
por Bruno Natal
Cultura digital, música, urbanidades, documentários e jornalismo.
Não foi exatamente assim que começou, lá em 2003, e ainda deve mudar muito. A graça é essa.
falaurbe [@] gmail.com
Seções
Arquivos
Posts recentes
Comentários
Tags