sexta-feira

17

setembro 2004

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Fluir Girls, set/2004

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Matéria de capa que escrevi para a revista feminina de surf Fluir Girls documentando a viagem de duas brasileiras para Jamaica.

Surf na Jamaica

Mesmo depois de insistentes trocas de e-mails com alguns surfistas locais antes da viagem, as informações sobre a temporada de ondas na Jamaica eram totalmente desencontradas.

Na ânsia de garantir que as cariocas Marianne Kerr e Raffaela Lemgruber fossem mesmo surfar na ilha, uns diziam que a melhor época é em janeiro, outros falavam que é em julho e alguns davam conta de que na Jamaica não tem essa de temporada, dá onda o ano todo.

Por isso, a chegada para a primeira sessão de surfe em Zoo, um dos principais picos, nas redondezas da capital Kingston, foi cercada de ansiedade. Era a hora do vamos ver.

Na noite anterior, Luke Williams, guia de surf das meninas e ator nas horas vagas, havia dito que um swell estava entrando e que o mar prometia estar clássico. Nem bem a van se aproximou da praia, Luke abriu um sorriso antes mesmo de ver a arrebentação e afirmou: “Está perfeito”. Saltando do veículo, no entanto, não era bem essa a impressão que se tinha. Era bem cedo e o lugar parecia uma lagoa.

A tensão só se desfez quando a primeira série entrou, trazendo esquerdas de pouco mais de meio metro, curtas, rápidas e tubulares. O alívio geral logo se transformou em risadas de satisfação. O fundo de pedra consistente, visível através das águas transparentes do caribe, realmente podia transformar qualquer ondulação em formações perfeitas.

Exatamente como quase tudo na Jamaica, Zoo não era o que parecia à primeira vista. É preciso olhar com atenção, dar tempo ao tempo para entender o que acontece na ilha.

Afinal, o que esperar de uma surf trip para um lugar que não tem nem uma surf shop e pouco mais de 80 surfistas locais? A melhor coisa a fazer é abandonar as expectativas e deixar-se surpreender. Para Meri e Raffa, a primeira surpresa foi a própria viagem para Jamaica.

Viagem – Locais do Pontão do Leblon, Meri e Raffa não são profissionais. Para ambas o surfe começou como uma brincadeira, virou uma paixão e hoje elas pegam onda diariamente e participam de campeonatos amadores com regularidade.

Raffa, 20, pega onda há três anos e nunca tinha surfado fora do Brasil. Meri, 22, é mais experiente: surfa há seis anos, já foi para o Peru duas vezes e passou três meses na Austrália. Para Meri, viajar para o exterior tem sido excelente para aprimorar seu surfe.

“Não que aqui não tenha boas ondas, já peguei altas na Bahia, no litoral de São Paulo e no Sul, mas lá fora parece dá para evoluir mais rápido”, diz.

Recém patrocinadas pela marca de roupas femininas Zack, elas foram convidadas para uma surf trip de uma semana que serviria também para sessão de fotos do catálogo da coleção verão 2005 da marca, inspirada na música jamaicana dos anos 70.

Ou seja, além de surfar, elas teriam que fazer o papel de modelos. Raffa e Meri foram as primeiras brasileiras a surfar na ilha. Oportunidades como essas não costumam aparecer. Não só elas conseguiram apoio para surfar, como esse patrocinador ainda investe numa viagem internacional inédita, coisa que geralmente só pinta para profissionais.

De quebra, ainda tinham as fotos para o catálogo, uma brincadeira inegavelmente divertida para qualquer menina com o mínimo de vaidade.

No primeiro dia de surfe, tanto Meri quanto Raffa estavam bem travadas. Elas eram uma das três únicas meninas no outside. A terceira era Danielle O’Hayon, Miss Jamaica 2002 e namorada do Luke. Para Meri, os locais não podiam ser mais receptivos.

“Os jamaicanos são gente boa, sempre respeitando a preferência e dando dicas para a gente se colocar melhor no pico. Eles liberavam onda pra gente direto, sem nem disputar braçadas. Nem no Leblon, com nossos amigos, é assim! Todo mundo dá força, elogia as manobras. O clima dentro d’água é fantástico”.

Raffa concorda, “nunca soube que na Jamaica rolava surfe, então quando cheguei, vi as ondas e conheci a galera, não acreditei! Quando você pega uma onda boa, todo mundo pára pra ver, comenta, bate palma e, quem está do lado de fora, buzina!”.

Surfe jamaicano – O surfe ainda é um esporte relativamente novo na Jamaica. No final dos anos 60 já havia surfistas na ilha, mas com as dificuldades para se conseguir o material necessário, a coisa não engrenou.

Como a procura ainda é pequena, não existe uma fábrica de pranchas e nem mesmo uma loja de equipamentos na Jamaica. Para botar as mãos em uma prancha é necessário encomendar no exterior, normalmente nos EUA.

Como na questão do ovo e da galinha, não dá pra definir qual problema vem primeiro. Se é a demanda pequena de pranchas que atrasa a criação de uma produção local ou se é a dificuldade de conseguir uma prancha que reprime essa demanda.

Tantos obstáculos fazem a rapaziada local demonstrar mais do tal espírito do surfe do que muito surfista bacana por aí. Ser surfista na Jamaica de fato exige muita força de vontade. Pra eles, não tem tempo ruim. Não existe mar que não valha a pena cair ou prancha quebrada que não sirva, cada oportunidade de surfar é aproveitada ao máximo.

Só eles sabem a trabalheira que dá para conseguir uma prancha pra fazer o que mais gostam. “Prego” parece um termo desconhecido para os jamaicanos, não tem essa de mandar bem ou mandar mal, só o fato de ser surfista já basta. Essa empolgação, beirando o estereótipo do surfista fissurado, faria bem a muita gente que já esqueceu porque começou no esporte.

Foi pensando em solucionar esses problemas que Billy Mystical, um dos pioneiros do esporte no país, fundou a Associação de Surfe da Jamaica, a Jamnesia. Criada somente em 1999, seu objetivo principal é incentivar e divulgar a prática do surfe na Jamaica e ajudar os novos valores que estão surgindo.

“Antes da Associação, não havia campeonatos ou algo oficial para os surfistas fazerem parte. Agora existe um time nacional, mandamos surfistas para os campeonatos pan americanos e mundiais de surfe. Nesse, terminamos na 21a posição entre 27 países.

Ficamos orgulhosos”, explica Billy. “Nos anos 70, o surfe não era um esporte que pudesse dar um futuro a seus praticantes, principalmente num país de terceiro mundo como a Jamaica. Hoje em dia o surfe virou um grande negócio, movimenta milhões mundo afora”, completa.

Além disso, pouca gente conhece as ondas jamaicanas porque os picos ficam no lado Leste da ilha, exatamente no extremo oposto da região onde ficam Montego Bay, Negril e Ocho Rios, principais destinos turísticos da Jamaica.

O país depende de condições bem específicas para dar onda. A costa norte necessita de uma frente fria e de um swell de norte, vindo da Flórida e passando entre Cuba e Haiti, atingindo a corta nordeste da ilha. Na região sul, o swell tem que passar perto da Jamaica, vindo da África.

Tirando os swells provocados por furacões, as ondas na Jamaica não são grandes, no máximo dois metros ou um pouco maior. No norte predominam as direitas e no sul as esquerdas.

O melhor de tudo é que não tem nenhum crowd. Os picos recebem apelidos nada humildes dos locais: Zoo é chamada de Pipeline e Lighthouse é conhecida como The Box. Em ambos os casos, as comparações são exageradas.

Coisa de menina – Com um quadro desses, dá pra imaginar que o surfe feminino na Jamaica ainda está engatinhando. “A impressão que tive é que o surfe feminino está crescendo. Tem um grupo de meninas começando a surfar, todas avançando. Tivemos mais contato com duas delas, a Lilly, de apenas 13 anos, e a Danielle”, fala Meri.

No total devem ter cerca de dez meninas que surfam na Jamaica. Elas até recebem um tratamento diferenciado, mas não tanto. “A gente libera ondas, mas de vez em quando somos duros pra elas aprenderem que em outros lugares vão ter que remar pra merecer surfar”, diz Luke.

Definitivamente, se você é uma menina e planeja viajar para a Jamaica, tem que ter um guia a seu lado. Se ele surfar então, melhor ainda. Raffa acha que elas tiveram muita sorte em relação a isso: “O Luke foi fantástico, ajudou a gente, entrou em todos os picos, mostrou onde eram as pedras, me segurou quando eu escorreguei, foi um parceirão”.

No segundo dia de surfe, de novo em Zoo, o mar estava um pouco maior, mas as condições estavam piores. Pra completar, havia uma equipe de filmagem na areia, aumentando a disputa pelas ondas. Seguindo a tradição jamaicana dos docu-dramas – filmes que misturam realidade com ficção – “Surf Rastas” conta a história do surfe na Jamaica através da ida de seus três melhores surfistas aos jogos mundiais de surfe. São eles Icah, 17, e Ini Wilmot, 19, filhos do Billy Mystical, seguidos por Luke Williams, 24, o guia da viagem.

Luke também já participou de outros filmes, como “One Love”, também dirigido por Rick Elgood, espécie de Romeu e Julieta passado em Kingston.

As garotas brasileiras deixaram uma ótima impressão entre os locais. “As meninas estão começando a surfar na Jamaica, por isso elas ficaram empolgadas em conhecer surfistas brasileiras. Muita gente acha que garotas não sabem surfar, essas garotas mostraram que podem sim”, contou Luke.

“No primeiro dia, o mar não estava tão bom e elas estavam pouco confortáveis. No segundo estava um pouco maior e elas se divertiram ainda mais”. Ini Wilmot ficou admirado: “Elas surfam muito bem. Quando a Raffa disse que surfa há apenas três anos não pude acreditar!”.

As melhores ondas estavam reservadas para o terceiro e último dia de surfe. Foi a vez de encarar as pesadas direitas que quebram no fundo de coral de Lighthouse e de se divertir em Copacabana, um beach break mais parecido com as praias brasileiras.

A melhor sessão de surfe, no entanto, ainda estava por vir. Foi na derradeira caída, num lugar chamado Prospects. Nesse dia um swell estava começando a entrar, trazendo longas esquerdas de um metro, abrindo para os dois lados, quebrando sobre três bancadas de coral longe da costa.

Com pouca gente na água, sobrou onda pra todo mundo e Raffa e Meri surfaram nas melhores condições de toda viagem. Um dia para não esquecer.

Além das ondas – Os resto da viagem foi longe das ondas e dedicado a passear pela costa leste do país em busca de cenários para o catálogo. Difícil foi decidir qual lugar era o mais bonito. Saindo de Kingston e indo em direção a região de Port Antonio pela costa, é praia paradisíaca atrás de praia paradisíaca. Lugares como a Blue Lagoon, onde alguns dizem que foi filmado “Lagoa Azul”, ou a Monkey Island, uma ilhota quase em frente a lagoa, são de tirar o fôlego.

Isso sem falar em Frechmen’s Cove, uma praia na saída de um rio que deságua no mar, cercada de verde e com água azul turquesa quentinha.

A Jamaica é conhecida mundialmente por sua música. Bob Marley, claro, teve papel fundamental nessa divulgação, mas ele não é a única estrela. Gênios como King Tubby, Lee Perry, Augustus Pablo, Dennis Brown e Horace Andy são tão importantes nessa história quanto o rei do reggae e são nomes indispensáveis em qualquer coleção de roots reggae de respeito.

Hoje em dia, os jovens escutam um gênero chamado dancehall, uma vertente eletrônica, espécie de cruzamento entre o reggae, o funk carioca e o hip hop.

Nomes como Elephant Man, Sean Paul e Vybz Cartel dominam não apenas as rádios jamaicanas, como também a de outros países, como a Inglaterra. Ainda assim, o roots reggae não perde sua mística e continua vivo, seja nos discos, seja no trabalho de artistas como Sizzla, responsável pela atualização do estilo e campeão de vendas na ilha.

Os jamaicanos respiram música, esse é o assunto favorito nas ruas. Mais ou menos como é o futebol aqui no Brasil. Qualquer esquina tem um som bom rolando, todo restaurante tem um aparelho de som ligado.

“A cultura musical é fortíssima, qualquer lugar que você pare tem alguma música tocando e sempre músicas regionais, jamaicanas. Visitamos uma fábrica de vinil e até fomos num sound system. Nunca tinha visto nada igual. Como adoro música, fiquei com a Raffa curtindo e bebendo uma Red Stripe, a cerveja deles”.

Uma das melhores pedidas pra escutar boa música é simplesmente prestar atenção. Ela está em toda parte, mas o principal local para ouvir é mesmo nos sound systems. Esses sistemas de som muitas vezes nada mais são do que uma pilha de caixas poderosas empilhadas ao lado de um bar de beira de estrada, cheio de gente em volta dançando.

Em outros casos, um sound system pode ser mais elaborado, como no caso do Passa Passa, que acontece semanalmente em Kingston e arrasta centenas de pessoas para uma festa que só acaba as 9 da manhã.

A comida também é outro atrativo. Os pratos são levemente apimentados, mesmo que seja apenas uma porção de rice and peas, um arroz misturado com lentilhas do tamanho de feijões, acompanhamento praticamente obrigatório em todas as refeições.

Quem gosta de comida natural pode se deliciar nos restaurantes de Ital Food, o vegetariano rastafari. “O que é legal é que, fora o surfe, as praias são lindas. Você cansa de surfar e pode ir para uma cachoeira maravilhosa. A comida é deliciosa e as pessoas te atendem bem, colocam um som, fazem você se sentir em casa”, conta Raffa.

Conexão Brasil – Jamaica – A iniciativa da Zack de levar as surfistas pra Jamaica promete continuar rendendo frutos. As brasileiras deixaram suas pranchas para trás, como um presente de agradecimento aos locais. Raffa deu a sua para Lilly, uma menina de 13 anos que chorou de emoção quando ganhou uma prancha novinha pra continuar surfando.

Já Meri deu a sua para Luke Williams, o guia. “Não é apenas uma prancha nova, vou guardar como recordação dessa viagem. E vou ganhar o próximo campeonato com ela!”. Dito e feito. Luke prometeu e cumpriu. Menos de uma semana depois ganhou uma etapa do circuito nacional estreando o brinquedinho novo.

Para Billy, “sendo um país pequeno, a Jamaica não precisa produzir vários atletas para provar que podemos surfar, dois bons surfistas por geração basta. Se conseguirmos isso, teremos atingido nosso objetivo de fixar o nome do país como um lugar de surfe”.

A importância de uma viagem dessas ultrapassa a interação entre os atletas. “Essas viagens são essenciais porque mostra ao nosso governo que o surfe está trazendo turistas, então é um negócio lucrativo. Isso confirma o potencial do esporte no país”, explica Luke.

Como uma boa surf trip deve ser, a viagem uniu ainda mais as duas meninas. “A Raffa é minha companheira de surfe no Rio, sempre caímos no Pontão, então foi muito bom ter viajado com ela, curtimos muito juntas”.

Raffa confirma: “Viajar com a Meri foi muito bom. Como ela é mais experiente, me ajuda com conselhos e passa tranqüilidade. Nós acabamos ficando muito mais amigas”.

A Jamaica talvez não tenha ondas de sonho, capazes de transformar o lugar num destino de ponta para o surfe como desejam os locais. Mas isso o Brasil também não tem e nem por isso as pessoas deixam de vir pra cá para pegar nossas marolas e curtir a vibe. Na Jamaica também é assim. Não é um lugar apenas pra surfar, tem que ficar sempre de olhos bem abertos. A qualquer momento você pode se surpreender.

Para saber mais, visite os sites da Associação de Surf da Jamaica ( geocities.com/jasurfas) ou do Jamnesia Surf Club (geocities.com/jamnesiassurfclub).

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