quarta-feira

24

março 2010

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Daime… paciência: jornalismo, sensacionalismo e (des)informação

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A diferença já começa pelas capas: a foto as cores, as chamadas, a (falta de) isenção.

Com o assassinato do cartunista Glauco, o assunto Santo Daime voltou com força `a pauta da grande imprensa. É uma pena que raramente assuntos importantes sejam discutidos sem que para isso seja necessário uma tragédia para as pessoas prestarem atenção.

Tenho uma relação pessoal com o Santo Daime, através de familiares. Já participei e presenciei cultos, sérios e organizados, longe dos grandes centros urbanos onde, parece, a doutrina sofre para manter seus principais fundamentos. É uma experiência intensa e nem de longe recreativa, como alguns textos fazem parecer.

Como era de se esperar, Veja e Época, as duas principais revistas semanais do Brasil, estamparam o Santo Daime em suas capas. E como, de novo, era de se esperar, quem lê a matéria da Veja encontra um festival de desinformação. A Época foi mais equilibada.

Em meio a histeria, os termos “droga”, “alucinógeno” e “seita” têm sido utilizado com frequência. Isso é perigoso, pois exclui da equação um elemento importante, que é a transdendência, o efeito do transe provocado pelo próprio culto e pela auto-sugestão.

É normal, e já presenciei pessoalmente, gente que tomou todas as doses do culto e afirmar que não sentiu nada. Isso ressalta a importância da crença para sentir os efeitos do chá. Uma comparação possível seria com o poder dos placebos, sem com isso querer dizer que o Daime não tenha substâncias psicoativas.

Voltando as revistas, a matéria da Veja chama-se “Alucinação Assassina” e na capa lê-se:

“O psicótico e o Daime – até que ponto se justifica a tolerância com uma dorga alucinógena usada em rituais de uma seita?”

Mesmo poucos dias após o crime, cometido em circusntâncias tão complexas, envolvendo um viciado em drogas com distúrbios psiquícos, Veja não precisou de muito tempo para ser taxativa. Dentro da revista, repetiu o título da capa, adicionando:

“Tomar o chá alucinógeno da seita Santo Daime quando se tem um transtorno psíquico, afirmam especialistas, é o mesmo que jogar gasolina sobre um incêndio. Tudo indica que foi o caso de Cadu, o assassino do cartunista Glauco e de seu filho Raoni.”

Enquanto isso, a Época foi mais responsável. Com o título de “O Doido, o Daime & o crime”, a reportagem questiona mais do que afirma. Na capa, trazia o sub-título, com uma pergunta:

“O Daime provocou o crime? A morte do cartunista Glauco reacende o debate sobre o uso da droga indígena ayahuasca em rituais religiosos”

Preferiu-se “rituais religiosos” no lugar de “seita” e houve inclusive um cuidado de botar o “Doido” antes do “Daime” na hierarquia dos acontecimentos. Poderiam ter ido além e ter colocado o nome do chá após o “crime”, pois nessa história confusa ainda não ficou claro — e talvez nunca fique — qual o grau de importância do consumo do Daime para o que aconteceu.

Muitos outros fatores entram em foco nesse crime e pode-se iluminar qualquer um deles no lugar do chá: “classe média sem limites”, “jovens viciados”, “fácil acesso a armas”, “violência urbana”. A bem da verdade, nas cidades de hoje, infelizmente isso poderia ter acontecido de qualquer jeito, em qualquer outro lugar, como aliás, repetidas vezes acontecem.

Continuando com seus questionamentos — lembre-se que a publicação dessas revista se deu poucos dias após o crime, deixando pouco tempo para apurações mais profundas — a Época abriu a matéria com o seguinte sub-título, novamente uma pergunta:

“Qual a relação enter o consumo religioso da ayahuasca e o comportamenteo psicótico do assassino do cartunista Glauco?”

E ainda destacou:

“A família não internou Cadu mesmo depois de um surto, há três meses”

“O pai de Cadu diz que pediu a Glauco que não desse o chá a seu filho”

Outro semanário relevante, a Istoé havia dado capa para o Daime em fevereiro, quando o seu uso foi regulamentado, e ficou amarrada, sem querer repetir o tema. No saite da revista, encontra-se apenas uma entrevista em vídeo, descontextualizada, com a mãe de um suicida que, segundo ela, participava de rituais do Santo Daime.

Para efeito de comparação, o último parágrafo dos dois textos discutidos aqui servem para ilustrar a enorme diferença de abordagem. Primeiro, o da Veja:

“Na semana passada, uma entidade da Bahia chamada Associação Brasileira de Estudos Sociais do Uso de Psicoativos entrou com uma petição no Supremo Tribunal Federal pedindo a liberação da maconha “para uso terapêutico e religioso”. Caso a petição seja aceita, são grandes as chances de outras drogas entrarem para o rol de “sagradas”. Tolerância em excesso [NE: da família?], combinada com negligência na mesma medida e uma boa dose de vulnerabilidade, física ou emocional das partes envolvidas: eis uma boa receita para construir uma tragédia.”

[NE: os destaques são meus, as chaves também]

Na ânsia de demonizar o Santo Daime, a combinação de fatores proposta pela Veja é tão extensa e específica que dá a impressão de que as chances de algo assim se repetir são pequenas.

Agora, o parágrafo de encerramento da Época:

“É natural que, após a morte em circusntâncias estranhas de alguém tão conhecido como Glauco, surjam dúvidas e suspeitas em relação ao ambiente em que o crime foi formentado. Cadu Nunes podia ser desequilibrado. Mas recebeu abrigo no Céu de Maria, partilhou sua bebida alucinógena e, ali, travou relações com quem viria a matar, Glauco e seu filho mais velho. Não há necessariamente entre esses acontecimentos uma relação direta de causa e efeito. Mas é difícil afirmar que os fatos não guardam nenhum tipo de relação. Tendo emergido da mata e do meio caboclo, o santo-daime encontrou nos centros urbanos uma complexidade de problemas que seus fundadores não poderiam imaginar. Agora regulamentado pelo governo, cercado de regras para impedir abuso, o uso religioso da ayahuasca floresce. Rápido demais, aparentemente. Talvez fosse hora de o mesmo governo que legitimou a droga cuidar melhor da fiscalizaão de seu uso nas igrejas do daime. O Brasil não quer a morte de outros Glaucos nas mãos de outros Cadus.”

Como se vê, as abordagens são totalmente diferentes. É inegável que é necessário regulamentação e fiscalização para evitar tragédias, isso só vai ajudar. Não apenas em relação ao Daime, mas também a diversas outras substâncias disponíveis.

O que não pode acontecer é tomar a parte pelo todo — pior, a parte negativa — e setenciar uma cultura e religião de um século que utiliza um chá milenar (já que para muitos o tempo de existência parece importante na avaliação de uma religião) por conta do descontrole de um indíviduo.

O Estadão publicou uma reportagem e uma entrevista esclarecedora com Henrique Carneiro, professor de História da Universidade de São Paulo (USP) e fundador do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (Neip). Começa assim:

Estadão: Como entender os significados distintos que têm a droga no mundo de hoje?

Henrique: Em primeiro lugar, há um fenômeno contemporâneo de exacerbação do uso não apenas de drogas. É bom destacar: em relação à alimentação, o processo é análogo. Há um mal-estar da cultura contemporânea ligado ao fenômeno da publicidade, à difusão consumista de uma série de produtos, que faz com que drogas, remédios, comida, tudo aquilo que o corpo ingere tenha uma faceta compulsiva. Outro fenômeno é a espiritualização, digamos assim, de um certo consumo de drogas a partir da influência de tradições religiosas indígenas ou ligadas a uma mística oriental – uma herança da contracultura no pós-guerra. Ambas se encontram no caso Glauco.

Estadão: No início deste ano o governo legalizou seu uso. Houve quem dissesse que a medida abre uma brecha ao tráfico. Há esse risco?

Henrique: É o oposto: a manutenção em alguma forma de clandestinidade é que tornaria o tráfico atrativo. O daime e outras religiões ayahuasqueiras são legados em certa medida da tradição dos anos 60, que resistem a essa tendência de uso profano, alienado, destrutivo de drogas. No Acre ele é uma verdadeira instituição e passa por um processo semelhante ao dos cultos afro-brasileiros: há uma assimilação tardia de sua herança indígena pela cultura brasileira. Mas um aspecto para o qual ninguém está chamando a atenção é o uso abusivo de remédios farmacêuticos. O número de farmácias no Brasil é superior ao recomendado pela OMS (Organização Mundial da Saúde). O segundo medicamento mais vendido no País (o número 1 é o contraceptivo Microvlar) é o Rivotril, um benzodiazepínico que só pode ser consumido de forma criteriosa. Alguém perguntou se o rapaz estava sob efeito ou carência de medicação controlada?

[NE: os destaques são meus]

Como se vê, a questão é muito maior, abrangendo muitos outros pontos além do Daime. Tentar reduzir ou simplificar é, no mínimo, uma atitude irresponsável.

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